Em África, o folclore local sempre tentou dar uma explicação para as enormes e estranhas circunferências, sem vegetação no interior, que aparecem quase do nada no deserto do Namibe.
Quando não são deuses ou outros seres sobrenaturais, a culpa destes “anéis de fada”, como são conhecidos, recai em supostas naves extraterrestres que aí costumam pousar. Mas, afinal, o que nos diz a ciência sobre este mistério?
Bem alto no céu, a bordo de um avião, as línguas de terra que vemos lá em baixo mais parecem ter sido salpicadas por grossas e diluvianas gotas de chuva. Os mais “aéreos” poderão dizer que faz lembrar a superfície cravada de crateras de impacto da Lua. Ao longo do deserto do Namibe, uma faixa na costa atlântica com mais de dois mil quilómetros, esticando-se do Sudoeste de Angola até à África do Sul, cruzando a Namíbia, esconde-se um dos mais peculiares fenómenos do mundo. Batizadas pelos ocidentais de “anéis de fada”, estas circunferências feitas de vegetação, com tamanhos que vão dos 2 aos 15 metros de diâmetro, surgem em diversas regiões do deserto, formando entre si intricadas estruturas hexagonais. O que não faltam são teorias que as tentem explicar, mas nenhuma é consensual.
Desde a década de 1970 que a opinião dos cientistas, sobre o que causa estes anéis, divide-se em dois grupos principais. Uns apontam o dedo aos insetos, nomeadamente as térmitas, enquanto outros indicam que tudo se resume a uma competição, por parte das plantas, pela pouca água que surge sob a forma de chuva. Mas sobre estas duas ideias já lá iremos. Outras hipóteses, umas mais verosímeis do que outras, sugerem um envenenamento provocado por plantas tóxicas indígenas, a contaminação radioativa vinda de determinados minerais e, ainda, as avestruzes, que ao tomarem os seus famosos banhos de pó criariam um círculo sem vegetação.
A culpa não é de dragões que vivem no subsolo
Para o himbas, povo seminómada que vive no Sul de Angola e no Norte da Namíbia, tudo é mais simples: os anéis de fada foram criados por espíritos. Ponto final. Para os bosquímanos, estes anéis escondem poderes mágicos e espirituais, com algumas tribos a acreditarem que cada marca representa a campa de um guerreiro seu, morto num dos sangrentos combates travados contra os colonialistas (brancos e negros) que, durante séculos, invadiram as suas terras e tentaram pôr termo ao seu estilo de vida. Na Namíbia existem lendas que se referem a elas como sendo as pegadas dos deuses na Terra, mas também há quem diga que foram criadas pelo bafo de bizarros dragões que vivem debaixo do chão.
Atualmente, estas velhas histórias fazem erguer o sobrolho dos mais céticos, mas a verdade é que o deserto do Namibe é um dos locais mais inóspitos do globo, daí a escassez de investigações científicas em relação a estas estruturas: não é qualquer aventureiro que se embrenha neste tórrido e vasto mar de areia, casa de algumas das maiores dunas de areia (uma delas tem quase 400 metros de altura) de que há registo.
Térmitas, umas glutonas muito suspeitas
Na Europa, um continente bem mais chuvoso e verde, também existem anéis de fada, mas a grande diferença é que estes são constituídos por cogumelos, o que os torna muito diferentes dos do Namibe.
Em 2013, o biólogo alemão Norbert Jürgens, num estudo publicado na revista Science, apontou as térmitas como as grandes responsáveis pelas circunferências que se veem na franja ocidental de África. Com base num estudo que fez entre 2006 e 2012 neste recanto do globo, o cientista da Universidade de Hamburgo encontrou sinais de atividade destes insetos em cada anel que inspecionou, atividade esta que aumentava dentro da calva sem vegetação.
No vale de Marienfluss, no deserto do Namibe, é igualmente possível encontrar estas enigmáticas estruturas. Já se sabe que não foram as avestruzes, com os seus banhos de pó, a criá-las. Créditos: Stephan Getzin/UFZ
Os anéis, sabe-se, costumam surgir assim que chove na região (algo raro), e, de acordo com a hipótese de Jürgens, é precisamente nesse momento que as térmitas surgem e comem as raízes das primeiras plantas que começam a crescer após a queda da água. Deste modo, ao travar o crescimento normal das raízes e, consequentemente, a capacidade de evaporação da água que aí se concentra, formam-se no subsolo bolsas de humidade, uma reserva essencial para a sobrevivência dos insetos.
A explicação parece convincente, mas para os outros biólogos está muito longe de ser um momento de "eureka". Quem o diz é o entomólogo Walter Tschinkel, autor em 2015 de um estudo detalhado, divulgado na PLOS ONE, que rejeitou todas as hipóteses apresentadas nos últimos tempos para justificar o mistério: só porque existe uma correlação, não quer dizer que estamos perante uma causalidade, avisou. Ou seja, podem existir térmitas nos círculos, mas isso não quer dizer que sejam elas as culpadas pela sua formação. Mais: segundo Tschinkel, as térmitas nem sequer alimentam-se de vegetação fresca, o que atira por terra a conclusão de Jürgens.
Um padrão matemático igual ao das células da pele
Quando tudo parecia voltar à estaca zero, eis que uma descoberta feita a dez mil quilómetros da costa africana volta a agitar as águas. Pela primeira vez, foram encontrados anéis semelhantes aos do Namibe fora de África, no poeirento e vermelho deserto da Austrália. A poucos quilómetros da cidade mineira de Newman, no Noroeste do país, o ecologista Stephan Getzin e a sua equipa do Centro Helmholtz de Investigação Ambiental de Leipzig, na Alemanha, encontraram um padrão semelhante de estruturas, espalhado por vastas áreas.
Vista aérea dos anéis de fada no deserto australiano. Nesta imagem, é possível ver como estão espalhados de forma homogénea. Créditos: Kevin Sanders
Tal como no Namibe, cada círculo aqui encontrado faz-se acompanhar por outros seis em seu redor, formando um hexágono. A crer no grupo de investigadores australianos, alemães e israelitas que fizeram o estudo recentemente publicado na revista PNAS, o curioso padrão formado pelos anéis de fada na Austrália deve-se à interação entre a água e a vegetação, a qual dá origem a um mecanismo biológico de auto-organização igual ao que foi apresentado em 1952 pelo famoso matemático britânico Alan Turing. Este mecanismo, revelado por Turing pouco antes do seu trágico suicídio, tenta descrever como surgem muitos dos padrões que vemos na Natureza, desde as riscas de uma zebra ao formato de uma bela concha do mar.
Esta ideia não é para desdenhar, quanto mais não seja porque em 2015 uma equipa de cientistas japoneses descobriram que o padrão dos anéis do Namibe eram iguais ao que encontramos nas… células da pele.
E os insetos? Pois bem, Getzin e os seus colegas registaram todos os sinais de atividade de térmitas e formigas, tanto nas imediações como nos centros sem vegetação, não tendo encontrado evidências de que sejam as responsáveis pelos anéis.
Após uma análise mais cuidada, a equipa internacional de investigadores concluiu que os círculos que aparecem na Austrália e no Namibe resultam de mecanismos completamente opostos, apesar de estarmos perante dois ambientes muito áridos. No deserto perto de Newman a crosta de solo dentro dos anéis é impermeável à chuva, levando a que a água escorregue para a periferia e alimente as plantas que aí se situam, formando os anéis de raízes e biomassa. As calvas servem, portanto, para abastecer de forma eficiente a vegetação, tendo em conta a pouca água existente. Com o tempo, o solo onde se encontram as plantas vai tornar-se mais solto e menos denso, permitindo que água se infiltre aí mais facilmente e reforçando todo o mecanismo.
A calva dos anéis encontrados na Austrália é impermeável à água, ao contrário do que sucede nos círculos do deserto do Namibe. Créditos: Stephan Getzin
No deserto do Namibe, por sua vez, o interior dos círculos absorve mais água e vai operar como um reservatório subterrâneo para a vegetação, com as raízes a crescerem em seu redor. As plantas mais altas, situadas nos limites dos anéis, conseguem alcançar a humidade que se foi sendo armazenada.
Na opinião de Getzin, estamos perante uma evidência de que os círculos de fada, tal como os conhecemos em África e na Austrália, surgem devido à competição pela água, com os padrões auto-organizados que aí aparecem (hexagonais, criando o que aparenta ser uma enorme colmeia) a favorecerem a sobrevivência das plantas. Tudo fruto da Natureza e da sua evolução.
Contudo, esta descoberta não mete, de forma alguma, um ponto final num mistério que dura há milénios, até porque são precisas mais investigações que tenham em conta diversos fatores ambientais. Além do mais, nada impede que, nos tempos vindouros, sejam descobertas estruturas semelhantes noutras partes do globo, adicionando mais peças a todo este puzzle. Apesar de tudo, uma coisa já é certa: não culpem os deuses, dragões ou os extraterrestres.
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